MARCHA PELA TERRA
29 DE DEZEMBRO DE 2016
“Bendita e louvada seja esta romaria, Bendito o
povo que marcha, bendito o povo que marcha, tendo Cristo como guia”…
O canto do Zé Vicente (Bendito
dos Romeiros) se tornou um hino e, toda vez que ouço, tenho boas recordações da
Romaria da Terra e das Águas do Bom Jesus da Lapa,
Para quem não sabe, há 38 anos o Santuário do Bom
Jesus, em Bom Jesus da Lapa, na região oeste da Bahia, recebe a Romaria da
Terra e das Águas.
São 38 romarias realizadas pela Comissão Pastoral
da Terra (CPT), pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e pelas dioceses de
Irecê, Barra, Bom Jesus da Lapa, pela arquidiocese de Vitoria da Conquista e
pelos movimentos sociais ligados à luta pela terra e em defesa das águas.
As Romarias da Terra têm um caráter ecumênico e
macro ecumênico, incorporando ritos e símbolos de outras religiões ao universo
católico.
As Romarias da Terra valorizam o religioso, e não
falham na sua contribuição profética. Elas têm um sentido simbólico, acham sua
fonte na própria marcha da humanidade.
CONFLITOS E CONQUISTAS
Sempre houve lugares que despertaram fascínio sobre
as pessoas e para os quais elas foram e vão à busca de algo para suas vidas. O
mais comum é que as Romarias da Terra se realizem em lugares marcados por algum
fato significativo da luta pela terra ou água: um conflito, uma conquista. As
terras do Bom Jesus da Lapa explicam tudo, se situa as margens do Velho Chico,
rio marcado para morrer.
É um espaço onde comunidades tradicionais, povos da
terra, povos das águas, ribeirinhos, pescadores, povos de fundo fecho de pasto,
quilombolas e geraizeiros (agricultores que habitam as margens do rio São
Francisco entre o norte de Minas Gerais o oeste da Bahia, entre o cerrado
e a caatinga, e dividem uma propriedade comum, chamada de quintal) manifestam
suas alegrias, angústias e suas lutas, compartilhadas com todos que defendem
seus territórios ameaçados pelos os grandes empreendimentos que degradam e
expulsam as pessoas de seus territórios.
São três dias de romaria. Nesse período, têm alguns
momentos que consideramos fortes. É claro que toda a mística da Romaria da
Terra e das Águas tem sua importância para os povos, mas existem os espaços que
chamamos de lugar onde ouvimos o lamento dos participantes. É o local da
escuta, onde os povos que vêm para romaria fazem suas denúncias. E não são
poucas.
A romaria ela começa em uma sexta-feira com uma
missa, uma espécie de acolhida a todos. No dia seguinte, logo cedo, ocorrem os
plenarinhos, que é a realização de discussões sobre cinco subtemas específicos,
de acordo com a realidade de cada grupo participante e relacionados com a
temática principal da romaria
AS NOSSAS LUTAS
Ainda no sábado acontece a Via Sacra, que é para
mim um dos momentos mais impactantes da romaria. Eu, há mais de oito anos
participo da Romaria da Terra e das Águas. Neste tempo também trago meus
anseios e angústias e creio que a participação popular nestes espaços é de
fundamental importância, pois são neles que historicamente nós, os povos, temos
voz e vez. Momento em que vemos nos rostos de cada um e cada uma de suas
lutas. Uma luta em defesa da vida.
Eu vejo a vida aflorar nesse momento. Enxergo uma
luta que há 38 anos acontece e que continua a mesma com novos problemas e
desafios, mas sempre renovada com o vigor de esperança.
A Via Sacra segue com rezas, benditos, ladainhas e
incelenças proclamadas para um rio que morre ligeiramente a cada dia pela a
ganância dos grandes projetos. Mas o canto também segue:
“Não deixe morrer/ Não deixe o rio morrer/ Se não o
que será de mim que só tenho este rio pra viver…”
Lavradores, lavradoras, ribeirinhos, ribeirinhas,
sem terra, guardiões e guardiãs das águas do Velho Chico carregam suas cruzes
como espadas, como resistência. Levam a devoção popular e as luzes do Evangelho
do Cristo libertador.
Em marcha, os romeiros alertam para a destruição da
natureza, para o futuro do homem na Terra e denunciam a violência e o descaso
do Estado com os trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Cada cruz tem a característica mística de sua
região identificada, a maioria é das regiões do semiárido, onde a água é mais
escassa e a luta pela sobrevivência é intensa. As cruzes enfeitadas com
elementos representativos são místicas e históricas.
LIBERTAÇÃO E VIDA
Para o romeiro a cruz é sinal das lutas, da
libertação e da vida. Algumas delas estão ali desde a primeira Romaria da
Terra, que antes era chamada só desta maneira. Com o passar dos anos, para
simbolizar a luta dos povos das águas, passou a se chamar Romaria da Terra e
das Águas.
A cruz é símbolo de luta e resistência. Foto: Joabes R. Casaldáliga
A Via Sacra é um desfile sagrado de cruzes com
enfeites variados, fitinhas, panos, cabaças, garrafinhas d´água e sementes
representando a fartura da terra. A Via Sacra é finalizada sempre as margens do
Velho Chico (ou o que resta ainda dele). A mística final é a imagem de São
Francisco, sempre levada por Dom Luiz Cappio, bispo da Barra, que é uma
referência das lutas pela vida do rio. A imagem do santo é colocada no centro
da mística popular dos povos do campo e dos ribeirinhos e ribeirinhas.
A romaria termina no domingo, com o “grande
plenarão” ou “plenerão final”, como é chamado. É para este encontro que são
levadas todas as discussões realizadas e que serão apresentadas,
sistematizadas, a todos e todas. Com elas, as dores e angústias dos povos
servirão para elaboração da carta final, que será trabalhada nas comunidades e
servirá de referência para os movimentos sociais durante o ano. A carta também
pode ser entregue às autoridades, como aconteceu em anos passados.
A romaria segue, a nossa via sacra segue. Cantamos
e rezamos a vida do povo em busca por dias melhores. Que nossas cruzes sejam de
luta e resistência!
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